Num mundo literário ainda dominado por cânones, Helena Magalhães tem sido uma das vozes que mais têm alertado para a urgência de se dar mais espaço às escritoras, ao seu talento e às histórias que querem contar. Há três anos, criou o Book Gang, “uma curadoria literária, com uma subscrição mensal, assente em novidades femininas publicadas em Portugal”, como explica, tendo ainda apresentado há poucas semanas a chancela literária Aurora, através da qual vai publicar novas escritoras, dando espaço à literatura contemporânea.
Como escritora ou curadora criativa, Helena quer dar a conhecer histórias das mulheres reais, imprimindo-lhes a visibilidade e “ferocidade” que não tiveram durante séculos, o que acontece precisamente no seu mais recente livro, Ferozes. “O que eu queria com este livro, através das minhas memórias e de histórias de mulheres que me rodeiam, era mostrar como esta ferocidade também está dentro de nós. Que podemos deixar de ser invisíveis e aprendermos a ser ferozes, a acreditarmos em nós, a levantarmos a nossa voz, a sairmos de relações tóxicas, a impormos o nosso valor e, às vezes, até numa coisa tão simples como perder o medo de dizer não. Interessam-me histórias que abram o diálogo, que abordem as dores, as vidas, as emoções e as lutas das mulheres de hoje. Histórias que criem uma revolução, que tenham impacto na nossa vida, que fomentem mudanças. Mas também histórias que nos façam sonhar”, justifica.
Neste espaço literário, a forma como as mulheres vivem as suas relações, assumindo em pleno os seus desejos e vontades, tem um papel central, como revela a autora: “Desde crianças, somos constantemente bombardeadas por ideias irreais do amor. Toda a cultura popular fomentou uma ideia de amor romântico que, eventualmente, trouxe muitas frustrações na vida adulta. A literatura contemporânea aborda cada vez mais o amor moderno de uma forma realista. Muitas mulheres já não veem o casamento e os filhos como o ideal de uma vida de sonho. O casamento em si é cada vez mais uma instituição falhada, uma vez que fazia sentido no tempo em que as mulheres dependiam dos homens para sobreviver. O amor para sempre já não é real, mas não que isso seja mau. Muitas mulheres antes de nós viveram presas em casamentos infelizes. Hoje temos a liberdade de viver como queremos, casar com quem queremos e quantas vezes quisermos. E isso reflete, para mim, o melhor lado do amor – o livre.”
Nestas páginas estão também as histórias dos homens que, tal como as mulheres, não cabem em ideais estereotipados. “Os rapazes também cresceram com uma ideia tóxica e errada do que é ser um homem, o herói que tem de salvar a mulher. Só que a mulher de hoje já não quer ser salva. Homens escritos por mulheres são geralmente vulneráveis, multifacetados e têm histórias ricas que acompanham a narrativa feminina. Já as mulheres escritas por homens representam muitas vezes um estereótipo sexualizado e irreal, que serve para elevar a narrativa masculina”, reforça a escritora.
“Na vida real, estamos em constante mutação e não somos unidimensionais. Então, procuro criar personagens que as leitoras possam despir, aprender com elas, crescer com elas, observar as suas várias dimensões e enriquecer as suas vidas através das vivências destas mulheres de ficção. Portugal pode continuar a apelidar a literatura moderna como fútil e continuar a ser o país da Europa com a menor taxa de leitura ou pode adaptar-se e reinventar-se. Eu acredito nesta mudança.”