Estrear no Cour d’Honneur do Palais des Papes, em Avignon, nesse mítico palco das artes cénicas, já traz uma espécie de “aura mágica” a qualquer peça que se apresente naquelas tábuas. Foi assim com O Cerejal, espetáculo que Tiago Rodrigues levou ao palco, em julho, horas depois de ter sido apresentado como o próximo diretor do Festival d’Avignon, primeiro estrangeiro a ter a honra e a responsabilidade de assumir o leme deste certame francês que inspira artistas – e espectadores – no mundo inteiro.
Foi com essa “aura mágica” que O Cerejal, texto derradeiro de Anton Tchékhov, subiu ao palco do Teatro Nacional D. Maria II, numa noite em que a expetativa e o entusiasmo eram cochichados entre os que conseguiram um bilhete para a tão aguardada chegada deste espetáculo a Lisboa. Contudo, o que se viu em palco não foi mágico, foi, isso sim, talento, fruto de um exímio trabalho de equipa, assente na generosidade de quem quer que todos brilhem. É isso que Isabelle Huppert faz com os seus colegas. Nome maior da representação, a atriz francesa sabe partilhar o protagonismo, sem deixar de evidenciar a sua formidável transmutação numa personagem frágil e sonhadora, que se refugia na esperança de que o amanhã atenue as dores do passado.
Filosófico e melancólico, este espetáculo tem na mudança, no irreversível e na incógnita que é sempre o futuro o seu ponto de partida e de chegada. As diferenças sociais, o lugar do dinheiro, que mede forças com o statu quo em declínio são assuntos levados à cena, num trabalho que reforça o lugar de Tiago Rodrigues como um criador que consegue levar muitos mundos ao palco, convocando a plateia a sentir-se parte de uma peça que, de uma maneira ou de outra, fala sempre de contemporaneidade.
Momentos antes de se estrear com este espetáculo no teatro a que chamou casa durante sete anos, e no qual recebeu das mãos de António Costa, nessa mesma noite, a Medalha de Mérito Cultural, o encenador, ator, dramaturgo e diretor artístico conversou com a CARAS sobre O Cerejal, Huppert, a relação do teatro com o mundo e a vida que agora acontece em Avignon, palco onde, acredita, se podem contar todas as histórias do mundo.
– A que sabe trazer esta peça à casa que foi sua durante tantos anos?
Tiago Rodrigues – A título profissional é a possibilidade de partilhar um espetáculo muito marcante para mim com aquele que talvez seja o público mais próximo do meu trabalho, que é o do Teatro Nacional D. Maria II, onde tive o privilégio de trabalhar nos últimos sete anos. A título pessoal há também essa dimensão de ser um momento de grande emoção, porque é ainda uma despedida desta casa ao mesmo tempo que é um reencontro na qualidade de artista convidado e antigo diretor. É um enorme prazer regressar, passado um mês e pouco da minha saída, para apresentar um espetáculo que, de alguma forma, marca esta transição na minha vida. É um espetáculo produzido pelo festival que vou dirigir em breve, apresentado no teatro que dirigi durante sete anos. Sinto-me muito bem-vindo e é um prazer misturar estas equipas.
– Tem encenado grandes atores, mas desta vez está a trabalhar com Isabelle Huppert, um nome maior da representação mundial. Houve da sua parte algum nervosismo ou inibição?
– A notoriedade e a carreira absolutamente extraordinária da Isabelle Huppert, e não vou deixar de o confessar, impressionam qualquer artista que a vá dirigir e trabalhar com ela. Até começarmos a trabalhar, claro que havia algum nervosismo da minha parte por ir dirigir uma pessoa tão marcante das artes do palco e do cinema. Mas passados cinco minutos estava a trabalhar com a Isabelle. A partir desse momento foi só uma fonte de prazer, nunca foi angustiante. Trabalhar com a Isabelle Huppert equivale, mais ou menos, a sermos treinadores do Cristiano Ronaldo. Claro que vai correr bem, estamos com um dos melhores do mundo. A questão é o que podemos fazer para que seja estimulante e que uma atriz como a Isabelle possa descobrir o que ainda não descobriu e oferecer ao público todas as suas capacidades. É ajudar um enorme talento a relacionar-se com o público.
– Nos espetáculos que escolhe levar a palco há sempre uma relação com qualquer realidade contemporânea. Neste caso, que aspeto é esse? É a mudança? O paradigma do futuro que é desconhecido?
– Há muitas coisas deste espetáculo que o público pode identificar como elementos do nosso tempo. Eventualmente, não as mesmas que eu, mas não tenho dúvidas de que qualquer espetador pode ver esta peça e pensar que Tchékhov a escreveu para si, em 2021 ou 2022. Este texto é tão extraordinário que falará sempre da época em que for representado. Quando for
feito em 2300, tenho a certeza de que O Cerejal vai falar sobre esse tempo, porque aborda as grandes questões da humanidade. O Cerejal fala muito sobre a mudança, sobre o fim de um tempo e o início de outro e a incerteza em relação ao futuro. Sem ter talento para ser profeta, atrever-me-ia a dizer que estes assuntos continuarão a acompanhar-nos.
– No programa deste espetáculo refere que cada ator faz o seu caminho com Tchékhov. Que caminho foi o seu?
– Nesta peça foi conseguir criar as condições para que todos os envolvidos pudessem partilhar a complexidade. Tchékhov apresenta-nos sempre personagens e situações complexas, nunca nada é completamente bom ou mau. Temos muita dificuldade em apoiar totalmente uma personagem ou recusá-la irremediavelmente. Todas têm coisas que nos interessam e irritam, um pouco como na vida, ninguém é perfeito.
– Fala das zonas cinzentas.
– E os cinzentos em Tchékhov são profundamente coloridos e vivos. Conseguir partilhar isso e falar de pessoas que não são completamente boas ou más, não falar delas em termos moralistas e dizer que o mundo é complexo ajuda a reflexão e à ternura pelos outros. O que tentei fazer com a peça, além de servir o texto de Tchékhov na medida das minhas capacidades, foi respeitar, quase homenagear, esse gesto do autor que é sempre crítico e ternurento, simultaneamente. Isso parece-me muito importante. Se houvesse um slogan para definir este trabalho seria: “Partilhar a complexidade.”
– Para terminarmos, como está a correr a sua mudança para Avignon?
– Está a correr muito bem, estou numa fase inicial. Estou a acompanhar a atual direção e estou numa espécie de “governo sombra”, com uma relação muito calorosa com a equipa do Festival e a observar como é que a próxima edição, de julho de 22, é desenhada e construída, para que a partir de setembro de 22, quando estiver a liderar o Festival, saber como se faz. É um período de muito diálogo, observação, aprendizagem e sê-lo-á até ao verão. Depois, já será um período de falar em voz alta, de liderar a equipa e propor ideias para o Festival. Está a ser muito estimulante. A título profissional é um enorme desafio e no campo pessoal é a aventura de emigrar. Estou a adaptar-me a outro país, a uma outra cidade, cultura, língua… É um grande privilégio.
Fotos. Paulo Jorge Figueiredo