“Abraçada à almofada, com o coração a pedir-lhe beijos, Ducélia não cabia em si de felicidade. Crescera de repente, inflamara. Estava excitada, apalermada, sem horizonte nem norte, e, se lhe perguntassem que dia era, diria, sem dar às pestanas, ser o mais feliz da sua vida; o dia em que os dias haviam deixado de ser iguais; o dia em que a fantasia se tornara realidade; o dia em que o sonho anunciava cumprir-se; o dia a partir do qual nada mais seria como antes. Beijou o travesseiro, estrafegando-o contra o peito, deu aos pés como um pato a levantar voo e cantou baixinho, em gritinhos mudos:
– Olhou para mim, olhou para mim, olhou para mim…
Desta vez não tinha dúvidas: Santiago olhara para ela. Sorrira-lhe, soprara-lhe um beijo, até. Por quantos anos fantasiara com aquele momento, sem coragem para um gesto que o realizasse?! E de repente, sem compreender bem como… Santiago… Santo Deus! Era o destino por ela! Quantas noites sonhara com uma réstia daquele olhar? Aquele olhar… Finalmente aquele olhar!
Pobre travesseiro, sufocado de abraços e beijos. (…) Quem poderia imaginar dentro daquela criança mortiça tamanho destempero, qual montanha calada contendo um vulcão, boneca russa parindo pequenibonecas, que de mil mulheres é feita uma mulher só e de outras mil se prenha de amor?!
Temperada a excitação, Ducélia levantou-se da cama, mirou-se ao espelho… (…) Duas vezes olhara para ela; dois dias, um trás outro, Santiago Cardamomo. Santiago Cardamomo, Santiago Cardamomo (…) Que bem lhe sabia aquele nome perpassando-lhe os lábios! Santiago Cardamomo… como um beijo, como um pássaro de vento voando-lhe da boca em direção à sua imagem no espelho. Um sorriso arrepanhara-lhe o rosto. Não conseguia desfazê-lo. Nem queria. Era a mais feliz das mulheres do mundo.”
(in “O Pecado de Porto Negro”, Relógio d’Água)
“Escolhi este trecho por ser o momento em que o sonho da jovem protagonista se torna realidade, o ponto de desequilíbrio da inocência, que se perde apenas uma vez na vida e que vai precipitar toda a trama do romance. Para aqueles que embarcarem para Porto Negro aqui deixo um abraço e os votos de uma boa viagem até à cidade do amor vadio!”
Norberto Morais
Norberto Morais nasceu na Alemanha e tinha seis anos quando veio para Portugal. Estudou Psicologia e também pensou ser músico. Contudo, foi a escrita que o prendeu, invariavelmente. Editado pela primeira vez em 2014, “O Pecado de Porto Negro” foi finalista do Prémio LeYa (2013) e semifinalista do Prémio Oceanos (2016), um reconhecimento que se começa a estender aos leitores e críticos que nos seus canais de YouTube, blogues literários e páginas de Instagram se mostram rendidos ao universo criativo do autor.