Criatividade insaciável
Numa entrevista que deu ao canal americano de negócios CNBC no início de 2017, Karl Lagerfeld revelou: “Nunca me senti inseguro em relação ao que vou fazer a seguir. Há muita gente em burnout hoje em dia, mas para mim trabalhar é um prazer tão grande que nunca me canso. Na moda, o que me interessa é o passo seguinte (…) E espero sempre fazer melhor.”
Nascido em Hamburgo, supostamente a 10 de setembro de 1933 – o próprio nunca diz a verdade quanto ao ano –, numa família burguesa, Karl Lagerfeld detestou ser criança, como referiu na mesma entrevista: “A minha infância foi muito simples. Só queria ver-me livre daquilo e ser crescido. Não houve nada de que me possa queixar, não tive traumas, mas nunca brinquei com as outras crianças, só fazia desenhos e lia.”
Seria com a mãe, a pessoa que estimulou nele os seus vários interesses culturais – mas que nunca assistiu a um desfile seu ou fez um elogio a alguma das suas criações –, que em 1950 assistiu, na sua cidade natal, a um desfile da Dior, e, como recorda, ficou “assombrado”. Tanto que percebeu que era aquilo que queria fazer e decidiu ir para a capital da moda com apenas 17 anos.
O seu primeiro passo numa carreira que já soma 63 anos aconteceu quando, em 1954, viu o anúncio de um concurso do Secretariado Internacional da Lã para a criação de três peças – um fato de homem, um vestido e um sobretudo – para a casa Balmain. Seis meses depois recebeu um telegrama a dizer que tinha ganho o primeiro prémio com o sobretudo e, em simultâneo, foi convidado a integrar o ateliê da marca, onde permaneceu até 1962. Em paralelo, em 1959 foi convidado para diretor artístico de outra prestigiada maison de couture, a Jean Patou. E aos poucos foi afirmando o seu génio, muito à frente do seu tempo, mas que soube dosear para não abastardar o legado das casas para as quais trabalhava.
Colaborando também como freelancer para a Chloè, entre meados dos anos 60 e 70, desde 1965 é diretor criativo da casa italiana Fendi (naquela que é a parceria mais longa da história da moda) e detentor do mesmo cargo na Chanel desde 1983. Seria finalmente na maison Chanel, fundada em 1909 por Gabrielle (Coco) Chanel, que Lagerfeld mais ousou ao longo dos anos. Às vezes diz que se Coco pudesse ver o seu trabalho ficaria furiosa, mas está a ser modesto. Porque se imprimiu às suas coleções as marcas de um homem muitas vezes descrito como renascentista, a verdade é que sempre manteve presentes os elementos chave do trabalho de Mademoiselle, entre eles o uso e abuso do branco e do preto e o seu imenso perfeccionismo.
Para quem não pode pagar os preços da Chanel e da Fendi, Karl criou, em 2012, a sua própria marca, com preços low cost.
Encenador de desfiles
Se em 2001 os 90 anos da Fendi proporcionaram a Karl Lagerfeld apresentar uma coleção em plena Fonte de Trevi, em Roma, a Chanel, avaliada em 2017 em 11,5 biliões de euros, o que a coloca em quinto lugar entre as marcas francesas, é um tal colosso financeiro que ao longo dos anos tem permitido ao seu diretor criativo dar largas a todos os seus desvarios megalómanos. Apaixonado pela grandiosa estrutura em ferro e vidro do centenário Grand Palais, de Paris, desde a infância, depois de ali ter visitado um salão automóvel, o “imperador” tomou de “assalto” aquele edifício em 2005, e desde então tem apresentado ali a maioria das suas coleções de prêt-à-porter e de alta-costura. E porque a sua veia criativa continua, de facto, imparável, o mais consagrado costureiro das últimas seis décadas a nível mundial já fez de tudo um pouco na imensa nave do Grand Palais: um bosque encantado, o interior de um avião, um carrossel gigante, um casino, um supermercado, um jardim florido, uma rua de Paris, onde o desfile se transformou numa manifestação feminista, icebergues, uma cascata tropical, uma casa de bonecas, umas ruínas gregas, um palácio de marajás da Índia e, já este ano, uma praia com ondas.
Desde 2002, depois de ter levado a Chanel, a partir de 1985, a adquirir várias empresas de mestres artesãos com os quais trabalhava e que quis salvar de um fim anunciado – retroseiros, bordadeiras, capelistas, sapateiros, chapeleiros, bijuteiros –, Lagerfeld passou a fazer anualmente uma coleção especial em que os homenageia, intitulada Métiers d’Art, na qual se supera em originalidade e que apresentou sempre em espaços inesperados: um castelo na Escócia, uma arena de rodeos em Dallas, a Ópera de Monte Carlo, um palácio em Tóquio ou a Cinecità, em Roma.
Apesar de toda esta mise-en-scène, nunca os olhares de quem se senta na plateia perdem pitada do que se passa na passerelle. Porque as roupas que saem da cabeça e dos esboços daquele que pode ser considerado o último grande costureiro parisiense são, também elas, grandiosas.
Karl Lagerfeld morreu esta segunda-feira, aos 85 anos, depois de ter estado doente por várias semanas.
Reveja o desfile da Chanel no Met, em dezembro de 2018: