É escritora, casada, tem 50 anos e três filhos: o mais velho, de 28 anos, é matemático, e está a fazer um pós-doutoramento em Matemática na Ecole Polytechnique Federale de Lausanne, onde dá aulas; o segundo, de 27, é
trader em matérias-primas num banco londrino; e o mais novo, de 18, estuda Matemática, Física, Filosofia, Russo e Japonês numa universidade nos EUA.
Sofia Marrecas Ferreira estudou Línguas e Literaturas Modernas na Universidade Clássica de Lisboa, licenciou-se na Universidade de São Paulo (Brasil), e obteve o mestrado no King’s College, em Londres, com uma tese sobre
O Lisboeta Queirosiano.
O Sangue da Terra é o seu quinto romance, depois de
Mulheres de Sombra (Prémio Máxima Revelação),
Uma História de Família,
Da Cor dos seus Olhos e
Só por Amor. Vive entre Lisboa e Londres, mas escreve em qualquer lugar. É muito, muito bonita. Conversou com
Rita Ferro na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, na atmosfera aconchegante e sofisticada da York House, sobre os temas que mais a apaixonam: a Mulher, a loucura, a solidão e o Alentejo.
Rita Ferro – Foi considerada por um importante crítico do
Expresso, Vítor Quelhas,
"uma das vozes mais originais da actual literatura portuguesa". Concorda? É uma provocação…
Sofia Marrecas Ferreira –
Pelo contrário, Rita. Esse jornalista sério muito me lisonjeou ao fazer essa crítica, identificando a minha escrita com o chamado "realismo mágico", próprio da Literatura sul-americana. Foi um elogio. E grande!
– Não é tão conhecida em Portugal como a excelência da sua escrita exigiria. Acha que o facto de viver fora tantos anos prejudicou a sua popularidade? Quero eu dizer: mesmo que não escreva com essa aspiração plebeia?
– Apesar de necessitar de reconhecimento e de público para existir, a Literatura não está ligada à popularidade. É mais fácil ser-se popular quando se é actor de cinema ou jogador de futebol do que quando se escreve Literatura. E os efeitos são mais imediatos. Sobretudo num país em que desde sempre a educação nunca foi uma prioridade e a Cultura raramente foi promovida. O que faz com que não se tenham criado hábitos de leitura como noutros países. Obviamente que o facto de não ter estado cá não facilitou, mas nunca faltei ao lançamento dos meus livros, às sessões de autógrafos, aos programas de televisão para que fui convidada, ou nas diversas universidades onde fui solicitada. Na Alemanha, por exemplo.
– Os seus livros são verdadeiros hinos à Mulher. Admira mais as mulheres ou apenas as conhece melhor?
– Evidentemente, conheço-as melhor, identifico-me mais com elas e admiro-as profundamente. De uma maneira geral, vejo-as como seres de uma grande generosidade, de muita coragem, menos comodistas e certamente mais irreverentes do que os homens.
– Notei na sua escrita uma afinidade em todas as personagens masculinas: fragilidade. Acha que, depois de tantos anos de repressão para corresponder a um paradigma prescrito, o homem já pode, enfim, chorar?
– Tem razão, Rita. Esse paradigma existiu e ainda existe, em menor escala. Mas não tenho dúvidas de que o homem sempre chorou. Era apenas um choro mais discreto e mais contido. Hoje em dia, é com naturalidade que mostra os seus sentimentos. O que pode ser um alívio. Ou um exagero. Em todo o caso, para mim, é claro que há uma maior falta de pudor, um autocompadecimento flagrante, e uma vontade desenfreada de esmiuçar mágoas, vidas pessoais e alheias, numa indiferença total pela privacidade e a intimidade de cada um. O que, claramente, não é particular aos homens, embora sejamos forçados a reconhecer que aderiram em peso a esta forma de comportamento emocional. Mas nem todos. E ainda bem!
– A mulher está a perder a doçura, Sofia?
– Não é porque a mulher conseguiu afirmar-se no trabalho e mostrar a sua capacidade de organização, a sua competência, que deixa de ser doce. Ela continua a ser mulher, mãe, filha, irmã, amiga, confidente, ou seja, a lidar e a gerir emoções. Aliás, como costumo dizer, a maior parte das mulheres são
"infinitamente completas".
– Revela um amor desmedido pelo Alentejo e uma propriedade invulgar para falar de solidão. Foi a planície que lha ensinou ou estar longe dela?
– Neste caso, talvez seja o facto de ter estado longe dela. Embora, por natureza, seja uma pessoa solitária. É curioso, porque sempre me espanto com o fascínio que as pessoas têm pelos centros comerciais, as férias de pacote, as excursões. Às vezes, nem se trata de uma falta de opção ou mesmo de dinheiro: as pessoas não gostam de estar sós porque temem a solidão. Procuram a turba, o barulho, a confusão, o movimento constantes. E, a mim, o Homem interpela-me enquanto ser humano singular e não como indivíduo global, não identificado. Por isso é que em todos os meus romances o Alentejo está presente. Por ser aí, num
habitat rude e hostil, que ele adquire todo o seu significado e toda a sua grandeza.
– Ultimamente, vive dividida entre duas realidades aparentemente opostas: a latina e a saxónica. O que a liberta ou oprime sempre que desembarca na Portela?
– O que me comove ao chegar à Portela é o invariável sentimento de ter chegado a casa. Há sempre inúmeras crianças no aeroporto, esbanjamento de alegrias, gritos, abraços, ou seja, situações muito domésticas que são extremamente comoventes. Como se um pedaço de vida de cada casa tivesse saído à rua. O que me oprime é descobrir nessas mesmas pessoas uma espécie de fatalidade, de melancolia, de tristeza até, porque a vida é difícil, porque tudo o que fazem é feito com sacrifício, porque parece não haver saída para os seus problemas, porque os hospitais fecham ou são mal geridos, porque as escolas encerram e são obrigadas a percorrer quilómetros com os filhos, porque se gastam milhares de euros a construir estradas e rotundas que não servem para nada, etc… O que não significa que noutros países o mesmo não ocorra. Mas, por se tratar do meu, incomoda-me mais.
– Há uma cena fortíssima neste seu último livro, Sofia, que dificilmente se esquece: Tomasa corta com uma tesoura e uma violência brutal o cabelo de uma outra mulher, que, por puritanismo, a convida a abandonar a casa…
– De uma maneira geral, quis dizer que ninguém tem o direito de julgar ninguém, porque toda a gente faz o que pode, como pode, e talvez nem sempre como devesse fazer. O facto é que a cada situação corresponde um contexto próprio, e os aspectos mais negativos de cada um de nós são inerentes à nossa própria condição humana. Há mulheres nas quais gostaríamos de reconhecer mais compreensão e menos crueldade.
– A sua escrita não abandona jamais o Alentejo, sem prejuízo da universalidade dos seus romances. Mas… será possível que a Inglaterra não lhe tenha inspirado um único verso?
– É verdade, Rita. Por incrível que pareça, a Inglaterra nunca me inspirou, até hoje, um único verso, apesar de me ter ensinado muita coisa boa. No fundo, acho que não me identifico com a cultura saxónica, embora a respeite e admire pela sua singularidade. Mas sou demasiado latina.
– A "loucura" das mulheres dos seus livros parece sempre advir de uma profunda solidão na incompreensão. Li bem?
– Leu muito bem. A loucura tem que ver, na minha escrita, com a solidão forçada ou o isolamento em que certos seres obrigam outros a viver, pelas situações que causam. Por desprezo, abandono, arrogância, escárnio, amor… e pelo que dizíamos há pouco, e que tem que ver com o mau hábito de querermos julgar os outros segundo os nossos próprios critérios…
– O embaixador britânico Alexander Ellis, que se despediu recentemente de Portugal deixando-nos uma carta de apreço, sublinha a competência da mulher portuguesa. "Tão grande que me casei com uma", diz ele. Depois de tanta humilhação, ter-nos-emos tornado invencíveis?
– Não nos tornámos invencíveis, Rita. Mas sobrevivemos a muita coisa. E temos uma capacidade de adaptação infinita.
– Que lhe falta sentir, Sofia?
– Tudo. Nem que seja… quase tudo de novo!
*Este texto foi escrito nos termos do novo acordo ortográfico.