Chama-se
Álvaro José da Silva Pereira Roquette, tem 36 anos, é divorciado e tem um filho de dez anos,
Guilherme, que o acompanhou na sessão de fotos. Em pequeno, Pita – como é conhecido – queria ser palhaço e vendedor de feiras, mas a vocação recrutou-o para decorador e ele soube honrá-la. Escreveu para revistas, decorou montras, editou livros sobre antiguidades, e, pouco a pouco, as pessoas começaram a render-se ao seu bom gosto. Tem um dos mais bonitos antiquários de Lisboa, o Ar Pab – na Rua D. Pedro V, zona que concentra as mais sofisticadas lojas de antiguidades -, e é hoje um decorador de culto em Portugal. Compreende-se: as casas que ‘faz’ surpreendem pela estalada de cor, o imaginário de grandeza e o traço de sumptuosidade que confere aos espaços mais plebeus, ora resgatando o fausto de outros tempos, desconstruindo-o sempre com uma ou outra nota irreverente, ora misturando elementos heréticos que escandalizam, ora, ainda, recuperando olimpicamente o
kitsch: só alguém muito seguro sabe fazê-lo sem resvalar.
Indagado, diz que aprendeu tudo com a mãe,
Mafalda Silva Pereira, cuja casa é, efectivamente, apontada em sociedade como uma referência de refinamento. Recebeu
Rita Ferro na sua casa da Avenida Sidónio Pais, tão ampla e cheia de surpresas que foi impossível captar na íntegra. É, além de tranquilo e divertido, uma alma grande e generosa.
– Como decorador consideras-te um
home dresser. Queres explicar?
Pita Roquette – É mais ou menos isso, considero-me um
home dresser e não um decorador formal: visto casas, dou-lhes alma, e, acima de tudo, crio ambientes para serem vividos. As casas são para se viver, para usar… por isso nunca as visto com fatos de domingo ou para visitar a madrinha. E mesmo quando as visto de comprido, é com a intenção de as tornar mais elegantes e sempre com a preocupação de que se consiga viver lá dentro!
– Conheço algumas casas que decoraste e encontro recorrência a alguns elementos. Religiosos, por exemplo…
– Todos temos a nossa marca, há sempre alguma coisa que nos identifica, que serve de assinatura. Os objectos religiosos não são uma marca. Trato-os como amigos e, por isso, tiro deles o melhor partido, até com humor. Mas a minha marca é, sem dúvida, a cor. A cor muda tudo! Por vezes basta pintar uma parede para modificar totalmente o cenário!
– Como antiquário tens ‘obsessões’, o que te refina. Interessas-te sobretudo por objectos dos séculos XVI e XVII, que pertenceram a
kunstkammeras. Queres traduzir?
– Só sendo obsessivo se pode sobreviver nesta maravilhosa coisa de ser antiquário. É preciso descobrir por esse mundo fora pequenas maravilhas a que chamo, muitas vezes, objectos de desejo! Não imaginas o gozo que se experimenta em encontrar uma peça feita de materiais raros. Um coco esculpido na costa no Ceilão, com montagens de prata, ou um relicário feito com corais sicilianos. Quem sabe não encontrarei um dia um pequeno elefante de cristal de rocha como aquele que pertenceu ao luxuoso museu da rainha
Catarina de Áustria… A estes museus privados chamava-se
kunstkammeras.
– Vê-se que tens fortes referências cinematográficas. Que cenários te marcaram?
– Quem não se deixa marcar pelo cinema? Todos temos uma referência cinematográfica, há um beijo que nos marcou, um vilão que nos faz querer ser fora-da-lei, um herói que nos transmite o ideal de salvar o mundo! A mim marcam-me os sítios, as casas, e, claro, os cenários: não consigo esquecer a sala do baile de
O Leopardo de
Visconti nem a casa de família do filme
Eu Sou o Amor, de
Luca Guadagnino. Curioso: os dois italianos…
– Quem são os ‘teus’ decoradores de referência?
– Estrangeiros:
Alberto Pinto é um mestre, aquele que, na minha opinião, personifica o bom gosto; depois
Jacques Garcia, pela sua irreverência e por todas as referências orientalistas que tanto me fascinam. Mas também rendo homenagem a
Andrée Putman e a
Maria José Salavisa, esta portuguesa, duas mulheres que arriscaram ideias em tempos adversos. Sem esquecer
Lucien Donnat, um amigo de Portugal que me ensinou a adquirir um olhar de conjunto sobre as coisas…
– Viajas muito. Por onde?
– Viajar é a alma dos meus negócios. Como antiquário parto em busca do objecto perdido, como
home dresser procuro cenários, referências para construir os meus! Sou o clássico
globe trotter, gostaria de conhecer o mundo inteiro, mas habito por Paris, Londres, Roma, Bruxelas, enfim… Queres que te mostre o meu cartão de
frequent flyer? [risos]
– A pergunta talvez seja imbecil, mas… saberias eleger o país com melhor gosto do mundo?
– Itália, Itália, Itália! Lembro sempre, quando penso neste assunto, que a palavra
chic foi inventada pelos franceses. Os italianos não precisaram de inventar palavra alguma, porque o são naturalmente…
– Os portugueses têm bom ou mau gosto, de uma forma geral?
– Os portugueses souberam absorver o melhor que o mundo lhes deu e isso faz de nós um povo com um gosto clássico, correcto. Apesar de se notar alguma mudança, as casas portuguesas eram muito austeras, sem rasgo. O bom gosto é uma característica que nos assenta bem, embora ache que o nosso gosto é ‘certinho’ de mais. Por isso me dá tanto gosto ajudar as pessoas a arriscarem no desconhecido e a mudarem a forma de olhar o próprio gosto!
– O gosto depende de quê? Da sensibilidade, da mundanidade, da harmonia?
– Do nosso olhar! Eu não olho para as coisas da mesma forma que tu olhas. O gosto depende de uma multiplicidade de coisas, por isso digo ‘não há mau gosto, há diferentes formas de ver’. Umas, mais mundanas, outras, mais harmónicas, outras ainda, mais sensíveis ou até atrevidas…
– A crise já chegou ao cliente de decorador? O perfil do cliente tem mudado com os anos?
– Crise? Foi palavra que apaguei da memória. Não consigo responder-te. A única crise que me preocupa é a crise de valores, que me parece andarem trocados. A outra é um mito: eu trabalho para todas as bolsas, do muito se faz muito, mas do nada também se faz milagres! O perfil do cliente varia, mas sempre com uma afinidade: todos querem viver numa casa de sonho! E é isso que tento proporcionar.
– Uma discussão em voga: saberás definir o ‘bom gosto’?
– Bom gosto é gostar do que o nosso olhar vê…
– Quem o outorga?
– Cada possuidor de um olhar e, sobre isto, não tenho dúvidas.
– Quais os critérios?
– Há tantos e tão diferentes! É como te digo: variam de olhar para olhar. O que é bonito para mim pode ser horroroso para ti…
– Por que razão um gosto deve prevalecer sobre outro?
– O meu trabalho é esse mesmo: depois de muita discussão, o de afinar o gosto do cliente com o meu. O que prevalece é uma soma de olhares sobre as coisas.
– Que autoridade temos para criticar quem gosta de marquises de alumínio, de azulejos de casa de pasto ou de pendurar na sala ‘O Menino da Lágrima’?
– Toda, se não gostarmos, mas, para isso, temos de ser capazes de sugerir novas ideias, soluções diferentes. Se não soubermos, não temos autoridade para não gostar.
– Que sentes perante uma casa ridiculamente faustosa, que nos atire o dinheiro à cara?
– Para essas nem olho! Outras terão alma, essas são armas de arremesso. Mas, nesse tipo de arsenal, aqui, em Portugal, as casas onde vivemos perdem para os popós de luxo! Há quem prefira bons carros a sentar-se em cadeiras confortáveis, em casa, e não se importe de ver TV numa sala nua e agreste. Mesmo tendo à porta um avião particular…
– Já te aconteceu zangares-te com um cliente por este interferir no teu trabalho de uma forma que ponha em causa a tua assinatura?
– Nunca perdi um cliente! Todos os trabalhos nascem de ‘partir’ ideias, todos os clientes, sem excepção, têm ideias. O meu trabalho é como fazer um bolo: juntar todos os ingredientes e, depois, forno com ele!
– E chegares a um ambiente sem ponta por onde se pegue, onde te apeteça dizer:
"Primeiro, tem de deitar tudo fora?"
– Há sempre ponta por onde pegar! O difícil é saber onde está, mas depois doba-se bem a meada. Deitar fora coisas, só se o cliente quiser, caso contrário, o desafio é dar nova vida às coisas que já existem. E por isso te disse que não é preciso ser rico para ter uma casa bem vestida!
– Em Portugal: há mais homens ou mulheres a decorarem?
– Não faço ideia, talvez mulheres!
– E a clientela? É mais feminina?
– As mulheres pedem ajuda, os homens mandam fazer de olhos fechados, porque não se querem preocupar!
– Que exemplo apontarias como superlativo bom gosto?
– Ai, ai… São sempre sítios onde me apetece imediatamente viver! É difícil destacar um, porque o olhar que faz de radar ao gosto também se vai alterando. Mas há sítios que nos marcam para sempre. O Hotel Ritz de Lisboa, a sala que albergava a colecção de arte africana de
Helena Rubinstein ou os Jardins da Fundação Gulbenkian. Enfim: ficava aqui o resto da tarde…
– Chateaubriand escreveu
"o gosto é o bom senso do génio"…
– Isso levar-me-ia a concluir que todos somos génios, pois, para cada um nós, o nosso gosto é sempre o melhor.
– Não concordo: há quem se reconheça destituído e cobice o gosto dos outros…
– O gosto é um olhar, como já te disse. Sem querer ser mal interpretado: nesta coisa do gosto existem cegos, e, como cegos querem ver, nem que seja pelo olhar do outro! O problema é que nunca vêem a sua realidade, mas sim a dos outros. Continuando com a metáfora, há oftalmologistas que nos ajudam a ver melhor e só assim se pode melhorar o gosto.
– Há casos perdidos?
– Sim, claro. Os que não me encontraram! [risos]
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico