Chama-se Joaquim
Manuel de Vasconcellos e Sá Grave e tem quatro filhas: Carolina Maria,
Joana, Leonor Galeana e Sarah Anne, uma das quais
baptizada com o nome da propriedade que está na família há três gerações – um
montado de azinho, na raia alentejana, com perto de mil hectares, onde a
dinastia de ganadeiros a que pertence, com o ferro Murteira Grave, cria toiros de
lide ou raça brava: Galeana. Por aqui já se pode ver a paixão por uma terra que
lhes foi ocupada e cuja devolução em 1979 lhes mereceu a edificação da ermida à
porta de casa. Conversámos sobre o seu amor aos toiros e o modo como poderá ser
distorcido pela militância antitaurina. Não se trata de um marialva ou de um
tradicionalista acéfalo, mas de um médico veterinário doutorado em produção
animal, senhor de uma cultura vasta e com obra publicada, que conhece os toiros
como ninguém. Depois de uma memorável sopa alentejana, mostrou-nos os dois
serviços que a casa oferece: o turismo rural e o turismo taurino.
– Diz-nos que a luta contra os toiros não é uma luta ecológica…
Joaquim Grave – As ganadarias são autênticas reservas ecológicas. Existe
uma contradição absoluta entre defesa dos animais e defesa ecológica. Preservar
a espécie dos toiros de lide é, por definição, defender a lide dos toiros. O
ecologista consequente não pode deixar de ser um defensor da corrida de toiros.
– Retive duas palavras enquanto conversávamos: ‘animalismo’ e
‘antropomorfismo’…
– Animalismo é uma corrente de opinião que defende o animal de uma forma
fundamentalista. Antropomorfismo é a teoria que extrapola para os animais os
sentimentos humanos. Formalmente, o animal não existe. O que existe são
espécies de seres vivos. Daqui resulta a ética tauromáquica, uma ética
aristotélica. O princípio é o seguinte: para cada ser, o seu bem supremo pode
não ser um estado passivo, pode residir numa actividade pela qual actualiza as
suas potencialidades e cumpre a sua própria essência. É exactamente o que faz o
toiro: sendo um ser por natureza bravo, lutador, realiza o seu grande bem
lutando e realiza-se plenamente na corrida. Confunde-se animalismo com ecologia
e, no entanto, um é o oposto do outro. Não se pode ao mesmo tempo salvar a
espécie leopardo e estar preocupado com o sofrimento das gazelas. Há que
escolher: ecologia ou animalismo. O animalismo não é uma extensão dos valores
humanistas, é a sua negação.
– Percebi que reage mal às acusações de ‘tortura’…
– Existe tortura quando alguém, numa posição de completa segurança, castiga um
ser indefeso, por sadismo ou para obter uma confissão. Francamente, não vejo
como possa existir tortura na corrida de toiros, quando o ‘torturador’ pode ser
ferido ou mesmo morto pelo ‘torturado’! Recorrer à palavra tortura para agravar
o suposto mau trato ao toiro, com o intuito de impactar na imaginação das
pessoas, parece-me, no mínimo, um autêntico insulto a todos os torturados do
mundo.
– Como define o toureio?
– O toureio é a arte mais clássica: supõe elegância, harmonia de movimentos,
perfeição de formas. O toureio cria formas, obras humanas a partir do caos,
isto é a acometida natural de um toiro. O toureiro imóvel põe, com um só gesto,
ordem onde não havia mais que desordem e movimento. A harmonia dos contrários é
o princípio estético fundamental na beleza do toureio. O toureio acrescenta
ainda uma dimensão que nenhuma outra arte poderá alguma vez dar: a dimensão da
realidade. Tudo está representado como no teatro e, no entanto, tudo é verdade
como na vida. Orson Welles disse: “o toureiro é um actor ao qual lhe
acontecem coisas de verdade!” Não é uma festa de perfeições, mas de
emoções. Será esta verdade que a nossa época e civilização rejeita? Aquela que
só ama a natureza asséptica e só aceita a realidade na condição que esteja
desinfectada? A mesma que afirma amar a juventude sempre que seja eterna?
– Não sei. Talvez rejeitem a ideia de que a arte possa servir de álibi para
um espectáculo de sangue…
– Os antitaurinos não têm o monopólio da sensibilidade e dos bons
sentimentos. Nenhum aficionado tem prazer em ver sofrer um animal. Na
actualidade prolifera uma moda oportunista, vagamente naturalista, vagamente
‘verde’, vagamente ‘vitimista’ e sobretudo completamente ignorante, quer da
natureza animal, quer da realidade das corridas de toiros. Mas uma coisa é
extrair as consequências pessoais da própria sensibilidade e outra muito
diferente é fazer dessa sensibilidade um standard absoluto e considerar as
próprias convicções como o critério da verdade. Essa é a definição de
intolerância; e em tons fascistas. Do mesmo modo, uma coisa é proibir-se a si
mesmo de ir às praças de toiros e outra, muito diferente, é querer proibir o
acesso aos outros. Esta realidade resulta de uma perda de contacto com os
animais e com a natureza real e é consequência de uma ideologia urbana que enferma
do síndroma de Walt Disney.
– Os toiros parecem assumir agora todo o protagonismo do sofrimento
animal…
– O bem-estar animal pode e deve ser definido e conhecido de um modo científico
pondo de parte envolvimentos e considerações morais. A dor é inevitável, o
sofrimento é opcional (Buda dixit). O sofrimento implica zonas mais
profundas do organismo e supõe uma consciência reflexiva que, naturalmente, o
animal não possui.
– Quais são então, na sua opinião, os grandes sofismas da militância
antitaurina?
– Os animalistas defendem que como “todos somos animais”, devemos tratar os
animais como tratamos os homens. Enganam-se. É justamente porque o homem não é
um animal como os demais que tem deveres para com eles e não ao contrário. Mas
estes deveres não podem, em nenhum caso, confundir-se com os deveres universais
de assistência, reciprocidade e justiça que temos para com os outros homens. Os
animais não têm direitos, o homem é que tem deveres para com os animais.
– Como é feita a selecção do toiro bravo?
– É feita sobre a sua bravura, que engloba vários rasgos de comportamento. O
toiro é um profissional da fúria. A sua fúria não é cega como a do homem, é
dirigida e, portanto, dirigível. A acometida primitiva foi evoluindo para o que
hoje chamamos investida, que é como que uma acometida com regras. A acometida é
natural, a investida é cultural.
– Explique-nos agora como é o seu ‘turismo taurino’…
– O turismo taurino é uma aposta a todos os níveis fascinante! As pessoas
chegam a meio da manhã à Galeana, é-lhes servido um aperitivo de boas-vindas
enquanto explico onde estão, o que fazemos e como fazemos. Em seguida faz-se um
recorrido pela herdade onde, de muito perto mas com total segurança, se podem
ver as várias camadas de animais da ganadaria incluindo os toiros, ponto alto
da visita. As manifestações de agrado são genuínas e intensas e também eu
desfruto ao tentar passar a minha paixão por este autêntico milagre zootécnico
que é o toiro bravo. Depois serve-se um belo almoço num local emblemático da
ganadaria onde, relaxadamente, se prolongam animadas tertúlias.
– No meio desta guerra, com que filosofia acalma o coração?
– Julgo ter uma estrutura interior forte – o que não me impede de chorar – mas
simultaneamente inquieta. Procuro estar atento a tudo o que é belo e me rodeia.
Quero ver a vida como um grande poema. Afinal de contas, sou um boémio de
espírito. E, como boémio, quero “emborrachar-me” das emoções que a vida tem
para me dar.
Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo
ortográfico
Joaquim Grave: “O toiro é um profissional da fúria”
Rita Ferro conversou com o médico veterinário e ganadeiro Joaquim Grave na propriedade alentejana onde a família cria toiros de lide ou raça brava.
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